Nuances de uma vida a dois
por Raquel Pivetta
Depois de duas décadas de casamento, Marina e Romeu decidiram se mudar para um bairro nobre. Queriam fugir das confusões e dos barulhos da vizinhança. Na nova residência, era tudo mais bonito, jardins bem cuidados, garagem interna, área de lazer… Nenhum resquício de sujeiras de animais nas calçadas nem assaltos em frente à portaria. Enfim, era hora de aproveitar o conforto e a tranquilidade do novo lar. Porém, nunca é tudo perfeito: como em toda vizinhança, sempre há algo para surpreender.
As brigas de casais eram a novidade. Dava para ouvir tudo de dentro de casa. Marina achava graça das histórias. Pareciam roteiros de novela. Até que um dia um episódio em especial, que ela pegou no meio do caminho, chamou sua atenção:
“— … meu amor, como é que você dá assim, para um desconhecido? — perguntou o marido, louco de ciúmes.
— E o que há de mal nisso, Alfredo?
— Você não se importa com os sentimentos dos outros?
— Alfredo, eu sempre dei pra todo mundo. Ainda mais que meu perfil no Instagram é público!”
E assim a discussão se estendeu por horas…”
Aquela situação deixou Marina intrigada. Na verdade, ela sentiu uma pontinha de ciúme da briga tão civilizada entre o casal vizinho — Marina e Romeu desfrutavam de um relacionamento saudável, mas as discussões entre eles costumavam ser mais acaloradas. Ela era uma pessoa sensível, dotada de um raciocínio afiado e não deixava nada passar. Ele, por sua vez, era reservado e de poucas palavras, bastante dedicado à esposa e à família, embora às vezes um pouco ríspido.
Mais tarde, quando Romeu chegou do trabalho, Marina quis compartilhar com ele:
— Amor, aconteceu uma briga hoje de manhã no 501.
— E dai? — perguntou Romeu, já focado em seu jantar.
— Estava pensando que podíamos elevar o nível das nossas discussões.
— Como assim, meu amor?
— Tipo… A gente podia ser mais doce um com o outro.
— Mais? — Perguntou Romeu, querendo ser engraçado. Ele adorava fazer a Marina rir.
— Ah, sei lá… Nas nossas brigas, você podia ser mais suave. Olha só: em vez de “Tu tá dando mole para aquele cara?”, você podia falar: “Meu amor, por que você deu atenção para aquele rapaz?”; e, em vez de “Você dá o seu contato assim, para o primeiro cara que vê pela frente?”, podia dizer: “Você compartilha seu contato com desconhecidos?” — explicou Marina, inspirada no que andou ouvindo pela manhã.
— Querida, não me lembro de ter dito essas coisas — alegou Romeu, sempre levando tudo ao pé da letra.
— Amor, é só um exemplo de como usar melhor as palavras — explicou Marina, com paciência.
— Ah, tá! Quer dizer, não sou muito bom nisso, minha Deusa, em ser delicado nas palavras — disse Romeu, já satisfeito com seu jantar.
— Será que dá para tentar? — perguntou Marina, animada.
— Claro! Mas será que isso vai mudar alguma coisa?
— Pelo menos, vai ser engraçado — respondeu Marina. De certa forma, ela queria desafiar o marido.
No dia seguinte, quando ela puxou conversa para falar sobre outra briga de casal, Romeu, cansado de um dia agitado no trabalho, interrompeu:
— Marina, eu não estou interessado nas fofocas dos nossos vizinhos.
Pronto, era tudo o que a mulher precisava para confirmar que tinha uma razão legítima para reclamar do marido. Até sentiu certo alívio. Ficou refletindo por um tempo, presa à ideia de que ele havia sido grosseiro.
Enquanto isso, Romeu assumiu algumas tarefas: lavou as louças do jantar, tirou o lixo, colocou o filho pequeno para dormir e ajudou a filha mais velha com os estudos. Em seguida, foi comprar pão para o dia seguinte. Quando voltou da padaria, preparou um chá de camomila para os dois e serviu em duas xícaras prateadas, que havia encontrado no armário da sala de jantar — local onde Marina guardava suas louças mais finas.
Após apreciarem a bebida, ele beijou a esposa carinhosamente e disse:
— Meu bem, tome um banho relaxante, que já já eu levo sua toalha. Se quiser, mais tarde faço aquela massagem que você tanto gosta.
Sem hesitar, Marina se dirigiu ao banheiro — melhor lugar para meditar sobre aquela estranha sensação de prazer. Tomada por uma espécie de volúpia de sofrimento, suspirou fundo e falou consigo mesma: “— Ah, esse Romeu é terrível… Não perde a mania de ser grosso comigo. Mas eu não desisto dele nem por decreto!”
Não demorou para Marina se recompor. Com um sorriso discreto nos lábios, saiu do banheiro e se aproximou de Romeu. Por um breve instante, os dois se entreolharam, envolvidos por uma cumplicidade silenciosa. Logo em seguida, Romeu disse:
— Querida, proponho que deixemos para outro momento o diálogo sobre aquele assunto que você mencionou mais cedo. Cheguei em casa exausto hoje. Você se importaria?
— Qual assunto, meu bem? Já não me recordo mais!
Veja também: Uns pagam mais caro
6 respostas
É melhor não dar publicidade desse Romeu, podem aparecer umas duzentas Julietas. O cabra cansado ainda fez massagem. (* ou pode aparecer umas… não sei o português, mas as mulheres virão tomar esse homem)
Kkkkk… Mas é bom porque ele pode subir o nível, incentivando os outros!
Oi Raquel,
É a criatividade na simplicidade da vida a dois. Eu poderia até dizer, como diria o grande Nelson Rodrigues, é a vida como ela é. Parabéns. Os diálogos estão perfeitos. bem como o enredo. Abraços
Caro leitor assíduo, fico feliz com seu comentário gentil e encorajador! É muito bom saber que você apreciou a singela história que compartilhei. Sem contar que é uma honra sua menção a Nelson Rodrigues, um grande escritor brasileiro. Muito obrigada por dedicar seu tempo para ler minhas crônicas.
Um grande abraço!
Adorei.. até me vi na cena descrita..
Na verdade todos temos defeitos e qualidades! Melhor focar naquilo que nos fez escolher a pessoa para compartilhar a vida e a família conosco! E saudemos com entusiasmo as parcerias de amor que estão dando certo! Que permaneçam assim para todo o sempre!