Ah, se ela falasse…
Raquel Pivetta
“Vai mesmo me levar junto? Tem noção do que está fazendo?”
Eu nem imaginava que ela pudesse revelar algo além de sua funcionalidade. Com meus vinte e poucos anos, queria mais era esgotar minhas possibilidades, aproveitar o tempo em sua infinitude, experimentar o sabor do novo. Aliás, tudo era diferente. Então, simplesmente a joguei dentro da bolsa e fui. E a usei. Sem nenhuma poesia.
Com a tensão de um flash prestes a disparar, ela me olhava atravessado, testemunhando cada respiração ofegante, cada onda de calor e de inquietude, cada descompasso dentro de mim.
É certo que ela enxergava tudo com mais clareza. Para a minha sorte, nada escapava do brilho gélido de seus olhos atrevidos e incansáveis: os sorrisos, o mistério no olhar, a beleza nos gestos, a sedução no vigor da juventude. Porém,mantinha-se muda, não emitia nenhum som, a não ser seuscliques imponentes ao capturar aquelas imagens para mim.
Tudo bem que eu não estaria disposta a mudar nenhum resultado, nem mesmo os negativos, se pudesse voltar o filme. Mas, poxa vida, não antecipar nenhuma revelação? Ela bem sabia que fora mais do que um pretexto para fazer aquele homem atraente se encantar pelos meus cabelos ruivos e vir decididamente em minha direção – ela já havia eternizado a imagem da moça de chapéu azul, que originou um quadro. Rendeu até uma crônica.
Minha angústia é essa nítida impressão de que ela foi importante um dia e a certeza de que ela não tem mais lugar entre nós, trocada pelas câmeras de celular.
Ah, se ela falasse… “Baterias que não duram nada. Bem feito!”
Álbuns inteiros de vidas vividas. Nossa, como eu me recordo! Pegava aqueles filmes de 36 poses e, ansiosa, ia até a loja para revelar. Era como um tiro no escuro. Nunca se salvavam todas e, no final, ainda tinha que pagar por algumas aberrações inesperadas, do tipo dois pontinhos brilhantes (de quem tem a pupila dilatada) perdidos, flutuando na escuridão de uma fotografia queimada, ainda que de uma lembrança não apagada.
Mas isso é que tornava tudo mais especial. Tanto é que seus frutos, digo, suas fotos não estão editadas e espalhadas aos montes por aí. Pelo contrário, elas não admitem filtros, são autênticas, repletas de imprevisibilidade e costumam ser bastante reservadas. Aquelas quadradinhas, de fundo amarelado, carregadas de nostalgia e de histórias em preto-e-branco, chegam a tocar a alma em todos os seus tons.
É lamentável que hoje, quando estou mais sentimental, no ápice de minha poesia, eu não saiba onde ela foi parar. Ah, se ela pudesse me ouvir…
Uma resposta
Olá Raquel,
Que sentimento fantástico de nostalgia. Me fez lembrar nos tempos em que eu ia no Fujioka lá no Conjunto Nacional revelar as minhas fotos. As minhas máquinas fotográficas eu as vendi. Gostei bastante. Um abraço.