A última palavra
por Raquel Pivetta
Eliana trabalhava na área de TI, com desenvolvimento de sistemas, mas vez ou outra tinha que redigir algum expediente formal que seria encaminhado para outras áreas dentro da empresa.
Sempre preocupada com a qualidade do texto, não deixava nada passar; nenhuma vírgula ficava fora do lugar. Mesmo assim, o chefe fazia questão de dar a contribuição dele: ia lá e trocava “constam nos manuais” por “constam dos manuais”, “maiores esclarecimentos” por “mais esclarecimentos”, “contratação de treinamento” por “contratação de repasse de conhecimento”, “documentos anexos”, por “documentos em anexo” e, o que é pior, substituía “obter recursos na área financeira” por “obter recursos junto à área financeira”, “em face do exposto” por “face ao exposto”…
Sem contar a folia da vírgula, que ele insistia em colocar depois de “ainda”, em frases como: “informamos ainda, que o sistema está em fase de homologação”.
O sujeito também tinha fixação por construções como “encaminha-se o parecer”, “solicita-se providência”, “ressalta-se”, “conclui-se” — mania que se alastrou pela empresa — e por frases do tipo “contamos com uma solução atitudinal”, “com o fito de agregar valor ao projeto”, “na oportunidade, colocamo-nos à sua inteira disposição para prestar os esclarecimentos que se fizerem necessários”…
O último documento que Eliana redigiu sofreu tantas intervenções, que ela resolveu ligar para a amiga, boa em português, para tirar uma dúvida:
— Oi, Regina, tudo bem? Amiga, só estou te ligando para confirmar um detalhe sobre o texto que estou escrevendo… “em atenção à carta tal” é com crase, né? — Perguntou Eliana, já convicta da resposta.
— Sim, claro! — Regina respondeu.
— É que eu coloco o acento grave, mas meu chefe vai lá e retira!
— Temos aí a preposição “a” e o artigo feminino, que se fundem e formam a crase — a amiga explicou.
Após alguns dias, ao entrar no elevador, Eliana encontra a amiga, que não hesita em lhe perguntar:
— E aí, Eliana, como ficou a questão da crase naquele dia? Ele aceitou (em atenção à carta)?
— Menina, nem te conto… Ele estava resistente, quer sempre ter a última palavra, então mudei de “em atenção à carta” para “em atenção ao expediente”.
— AHAHAHAHAAHAHAHAHA!
Só pararam de rir quando perceberam que tinham passado do andar em que iam ficar.
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