A sina de Sara: uma releitura contemporânea de “Um homem célebre”

A sina de Sara

A sina de Sara: uma releitura contemporânea de “Um homem célebre”

Raquel Pivetta

 

— Sara, você escreve pra mim? Não consigo pensar em nada.

Aninha namorava Pedro havia dois anos e estava tentando reatar após uma discussão trivial. Em poucos minutos, a mensagem para o namorado ciumento da amiga estava pronta. Aninha ficou entusiasmada com o texto. Sara, por outro lado, só queria encerrar logo aquilo.

— Espero que dê certo — disse Sara, já correndo para o elevador.

Mal sabia ela que ainda não havia terminado. Todos se lembravam dela com frequência em aniversários, casamentos, despedidas… Não deu nem tempo de atravessar o portão de casa:

— Que sorte te encontrar, Sara!  É que… A gente está encomendando a coroa de flores para a tia Dolores, então se puder me passar a mensagem… — pediu sua amiga de infância.

— Sim, claro! Nossa querida Dolores vai deixar saudades — comentou Sara, suspirando ao se lembrar da professora de história do sexto ano. — Te mando daqui a pouco.

Nos momentos livres, Sara gostava de extrair humor do cotidiano escrevendo. Sentava-se para colocar no papel e, em poucas horas, surgia um novo texto. Seus relatos pessoais espalhavam-se pelas redes sociais e entre as rodas de amigos. Por onde andava, ouvia comentários sobre suas crônicas, seguidos de diversas sugestões de temas.

Mas seu desejo ardente a sufocava e a distanciava de todo aquele alvoroço. A criatividade e o talento dos grandes escritores a perturbavam, revelando sua própria mediocridade. Ela ansiava por desgarrar-se das histórias do dia a dia. Era tortuoso o caminho para a ficção e a narrativa longa. Curto e suave era o atalho para as banalidades. As crônicas e as cartas sentimentais fluíam a cada respiro, a cada perrengue.

— Fervilham no meu cérebro como larvas em esterco — disse Sara, certa noite, ao se deitar.

E os textos curtos rendiam aplausos. Faziam tanto sucesso, que Sara pediu demissão no trabalho para poder dedicar-se exclusivamente à escrita.

— Olha, Sara, você não precisa abandonar seu emprego — disse José Carlos, seu chefe. — Você pode conciliar as duas coisas.

— Com mais tempo, vou conseguir me livrar das linhas fáceis — disse Sara, decidida. E não voltou atrás.

O fato é que passaram-se os anos, e os pequenos escritos de Sara ganharam grande visibilidade. Ela trabalhou para colunas de jornais populares e publicou dezenas de livros, cujas vendas sempre se esgotaram.

Mas Sara não conseguia trilhar o trajeto mais nobre. Nunca conquistou sequer um prêmio literário, por exemplo. A mente acordada nos fatos era o maior obstáculo. Sua imaginação ignorava seu grito silencioso. Assim, a razão e o mundo de Sara conduziam sua caneta à verdade nossa de cada dia. Tudo terminava em crônica, e a crônica era o início de tudo. Seu talento era a crônica; e sua condição, crônica.

Teve bastante tempo para insistir nisso. Só se libertou dessa danação aos 93 anos. Não, ela nunca desistiu. E dessa vez não precisou se preocupar com as palavras para a faixa de condolências. Já estava tudo pronto, à sua espera: “Querida Sara, escreva muitas crônicas aí no céu”.

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