O colete azul

por Raquel Pivetta

Só andavam juntos. Pareciam irmãos, embora houvesse quem apostasse que os dois viriam a se casar um dia. Nem uma coisa nem outra. Eram simplesmente primos para sempre. Rir era quase como respirar. A todo momento, riam de tudo e de todos. Do pastor, do padre, do cobrador de ônibus, do carro velho, do cachorro, de si mesmos… Nada nem ninguém escapava.

Frequentavam as festas juninas, o cinema (pulgueiro, como era chamado), os parques de diversão e os clubes da cidade. Tudo sem gastar um tostão, até porque não tinham nada mesmo. Não havia  tempo ruim para aquela dupla. De carona ou a pé, eles iam e vinham a qualquer hora, de noite ou de madrugada.

Medo era um senhor desconhecido. Ousadia, sim! Com essa eles tinham intimidade. Impulsionando o banco da roda-gigante, davam giros de 360 graus, dezenas de vezes seguidas (não podiam parar, senão tinham que recomeçar a contagem), dançavam lambada como ninguém e brincavam na piscina de adulto, eram os últimos a sair; na verdade, só se retiravam quando o segurança se aproximava.

— Vocês dois aí… Encerrou o horário, o clube está fechando.

O perrengue da falta de dinheiro não limitava a história movimentada daqueles dois. Assim, viviam uma vida simples e intensa, rica de momentos únicos. Raquel e Léo expressavam as dicotomias de uma maravilhosa antítese: a leveza e a intensidade, a riqueza e a simplicidade.

Certo dia, tiveram a ideia de passar no brechó novo da cidade. Ela já conhecia, pois andara fazendo uns negócios por lá. Quando entraram na loja e começaram a apreciar as belezuras expostas, cada um numa ala, ele — crítico como era — retirou um cabide da arara e o ergueu para mostrar um colete azul, de tecido rígido (napa grosseira imitando couro), massacrado por uma costura insistente e de caimento um tanto… Pesado (vamos dizer assim).

— Olha só, Raquel, um colete a prova de bala! HAHAHAHA!

Receosa de que a vendedora tivesse ouvido aquilo, Raquel ficou vermelha. Não sabia  onde enfiar a cara. Somente ela sabia quão difícil havia sido passar para frente aquela exclusividade que mandara fazer na costureira.

Não se sabe se a vendedora ouviu. Também não se sabe se de tudo que viveram juntos restou algo além das boas lembranças. O que se sabe é que o prédio do cinema foi demolido, os clubes acabaram, festas juninas como aquelas não se fazem mais, a lambada saiu de cena, o Léo se tornou um homem polido e sofisticado, e a Raquel… Bem, dizem que ela nunca mais entrou num brechó.

Sobre a autora…

Veja esta outra crônica sobre Raquel e Léo: https://vivagramatica.com.br/viva-gramatica-sozinhos-de-onibus/

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9 respostas

    1. Olá, Rebeca! Criar uma categoria no blog para crônicas nasceu de uma vontade de proporcionar exatamente o que você descreveu, já que o conteúdo de gramática nem sempre é tão envolvente. Então eu fico feliz com o seu feedback!

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